Quis o "destino" que a leitura do evangelho do primeiro domingo do papado de Francisco fosse o da adúltera. A multidão leva esta mulher para Jesus, perguntando se devem apedrejá-la conforme a Lei. Cristo responde que aquele que não tem pecado lance a primeira pedra.
A narrativa termina com Jesus e a mulher – perdoada e incentivada a “não mais pecar” – sozinhos, pois a multidão se foi. A partir desta passagem, o Papa reflete sobre a misericórdia de Deus – que “nunca se cansa de nós” e nunca deixa de nos oferecer seu perdão.
Todo o escândalo do cristianismo para a cultura pós-moderna, todos os embates mais sérios que o Papa Francisco poderá ter com a sociedade secularizada de nosso tempo podem ser entendidos a partir destas poucas linhas.
A “Igreja pobre e para os pobres” apresentada por Francisco é simpática e saudada por todos. Com base nesta simpatia, os jornais se abriram generosos a sua afirmação de que a mensagem da Igreja é, fundamentalmente, de natureza religiosa (afirmação que poderia passar por alienada e desengajada em outros tempos). Sua crítica, de caráter místico e pouco compreensível para muitos, de que “uma Igreja sem Cristo seria uma ONG piedosa” virou manchete de vários jornais.
Mas suas posições no campo de moral sexual, bioética e defesa da vida já causam certo descontentamento em vários setores da sociedade e até entre católicos. Seria ele um tradicionalista repressor, do estilo da velha guarda católica? O Papa aceitará o aborto? E o casamento homoafetivo? Como se posiciona diante do uso da “camisinha”? E por aí vamos…
A chave de tudo isso se encontra no episódio de Jesus e a adúltera. De fato, Jesus não nega o caráter “pecaminoso” do adultério. Afinal, quem deixaria de considerar errado trair a confiança da pessoa amada? Erros acontecem e todos os seres humanos estão fadados a errar muitas vezes em suas vidas.
Por mais “relativistas” que sejamos, temos que reconhecer que nem tudo pode ser considerado válido. Mesmo nossa sociedade, aparentemente tão permissiva, não perdoa e pede castigos exemplares para aqueles que quebram suas normas.
A grande novidade do cristianismo, que vem de 2 mil anos mas continua a nos escandalizar, é a misericórdia e o perdão que sempre a acompanha. A Igreja “condena o pecado, mas ama o pecador”. Jesus veio para os pecadores e não para os virtuosos. Sem esse pano de fundo, a pregação católica se torna incompreensível e a mensagem evangélica se desvirtua em moralismo e exclusão social.
A misericórdia pressupõe o pecado. Santo Agostinho não se apresenta como pecador, em suas “Confissões”, por masoquismo ou autoflagelação pública, mas porque reconhece que quanto mais percebe o seu limite, mais percebe também o amor de Deus por ele, e mais livre se sente em relação ao próprio pecado. Mas nossa sociedade não quer aceitar o pecado. Sem a experiência da misericórdia e do perdão, nada de bom parece vir do reconhecimento do próprio erro.
Este confronto entre estas duas formas de compreender o erro e o perdão em nossa sociedade será, provavelmente, o ponto mais polêmico do pontificado e do magistério de Francisco. Caberá a ele, com sua simplicidade e pobreza, conseguir transmitir essa mensagem de uma misericórdia que não condena, mas pelo contrário abraça a pessoa que erra. Cabe a cada um de nós aceitar o risco de se sentir amado e, a partir deste ser amado, se perguntar sobre o significado da mensagem cristã.
de Francisco Borba - PUC SP
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