“Acima de tudo o amor!” (1
Coríntios 13,13)
Sonho é como semente, que precisa encontrar a terra e ser
enterrado para ter condições de realmente se desenvolver. Algumas
sementes se adaptam facilmente a qualquer solo. Outras, precisam de
elementos específicos ou cuidados adequados. Um tipo não é melhor
que o outro, apenas diferente. Resistente ou frágil, cada semente
carrega em si a força da vida que lhe torna capaz, ao seu modo, de
romper-se para explorar o solo onde está enterrada e dele
sustentar-se. Sementes e pessoas têm suas semelhanças, mas não são
a mesma coisa. O “tipo de pessoa” não permite saber, com
certeza, qual o fruto possível, pois além do que se vê, existe o
mistério divino.
Já se passaram mais de doze anos desde aquele dia em que decidi
ingressar na vida religiosa, através da formação seminarística.
Aliás, “seminarista” vem da palavra semente... Junto com a
decisão, um sonho.
A vida vai abrindo estradas para nossos passos, mas se não
caminhamos, o caminho por si não é capaz de nos levar ao destino.
Mesmo com coragem de caminhar e toda a beleza que se revela pela
estrada, também pedras, buracos, mau tempo, dificuldades, trilhas
perigosas, assaltantes e desvios inevitavelmente vão aparecendo. Vai
ser preciso descansar em alguma pousada ou, se ter a sorte de
encontrar boas pessoas pra chamar de amigos, pode ser que se façam
paradas mais longas em alguns abrigos.
“E o semeador saiu para semear...” (Mateus
13, 3-9). Jesus uniu caminho e semente para falar da
Palavra, a mesma Palavra que me seduziu desde criança e me provocou
a assumi-la como condução para meu sonho. Jesus se identificou como
“caminho”. Eu assumi ser cristão, e como seguidor, devo
identificar o caminho que existe em mim também e onde estão caindo
as sementes, os sonhos que formam o dom da minha vida.
Não se caminha sozinho. Pessoas o tempo todo cruzaram o meu caminho
e muitas vezes interferiram na minha direção. Muitas são as
pessoas que me trouxeram água quando o calor estava sufocante, me
deram comida quando a fome me consumia, me ofereceram roupa para
aguentar os dias frios e sombrios. Muitas pessoas ocuparam meu tempo
com suas histórias, ou perderam seu tempo escutando as minhas.
Muitas somente caminharam ao meu lado, até mesmo em silêncio.
Outras espalharam sementes novas, de espécies que eu nem conhecia,
que aos poucos foram crescendo e dando novas cores e cheiros no meu
caminho. Já encontrei pessoas que ficaram pouco tempo comigo,
outras que seguem de mãos dadas comigo há muito tempo. Já precisei
parar de caminhar, porque a forte chuva e o vento atrapalhavam meus
passos. Diante do perigo, algumas vezes foi preciso esperar.
O caminho parece não ter fim e muitas foram as vezes em que me
deparei com encruzilhadas. Exigiram de mim um posicionamento, uma
escolha, pois não se pode caminhar por duas estradas opostas ao
mesmo tempo. Estou agora diante de mais uma dessas encruzilhadas. O
caminho percorrido nos últimos anos, marcado por paisagens
deslumbrantes e momentos importantes e felizes, que contribuíram
imensamente para meu crescimento humano, afetivo, intelectual e
cultural, agora me exige um posicionamento.
Junto a tantas alegrias e conquistas, algumas situações plantaram
dentro de mim muitas angústias e até solidão. O acesso ao
conhecimento da Teologia me possibilita olhar para minha fé de forma
mais madura e convicta, reconhecendo que, para mim, muitas realidades
da Igreja e sua hierarquia tomam direções contrárias ao que
acredito e sonho quando exercem um poder centralizador.
Com a intenção verdadeira de aprofundar sentimentos e convicções,
não exitei em trilhar o caminho da verdade e honestamente não
escondi minhas limitações e contradições. A solidão foi presença
constante, e reconheço meu movimento para isso em muitos momentos.
Incoerências e desencontros marcaram também esse período mais
atual. A distância da família e dos amigos, os conflitos internos
cada vez mais consistentes, turbulosamente misturados por uma
estrutura formativa massiva e às vezes omissa, que tem uma tendência
a infantilizar e desresponsabilizar quando prefere, por comodidade,
exigir o cumprimento de preceitos e a vivência de um comunitarismo,
ao invés de gerar real comprometimento, foram se tornando um peso
opressor e despersonalizante para mim, manchando minha vontade de
perseverar.
Sou de uma geração que faz parte dos desafios da atualidade, com
pais separados, parentes em diversas religiões e as cobranças do
secularismo. O modelo atual formativo ainda não abrange com coragem
essas realidades e faz exigências que não respondem a essa nova
condição social, diferente dos moldes rurais e conservadores que
formavam a Igreja. As particularidades de cada um se diluem em meio à
tendência de um “apadronizamento”.
Embora o discurso não seja assim, na prática o que percebo é a
tentativa de “formatar” todos num molde padronizado. “Ser
comunitário” é a desculpa sempre usada para esconder uma
formatação exigida. Não posso concordar com esse jeito de
construir vocações nem ser conivente com um modelo que não dá
resposta ao mundo de hoje, pois tende a provocar um isolamento da
realidade e afastar das situações concretas da vida numa estrutura
que protege e separa do “mundo lá de fora”. Não tenho
motivações para me arriscar a isso. Não estou simplesmente
condenando o modelo adotado, pois acredito na fraternidade solidária
e na partilha dos bens, mas confirmando que não posso abraçar este
“estilo religioso” da forma como se apresenta, diante do que sou
e acredito.
As pessoas, os leigos de forma geral, ainda estão à margem de
muitos processos da Igreja. A vida religiosa preserva e prioriza o
comunitário, mas me parece defender isso de forma fechada em si
mesma. Sob minha leitura, sinto que, em nome da instituição, ainda
não se permite uma plena participação de todos. Quando ingressei
na Congregação, o ideal do fundador de “ir ao povo” fez brilhar
meu olhar de esperança, mas sempre que “fui ao povo” em
contrapartida vinha um pedido para “ir menos”. Como concordar com
o que contraria aquilo que sempre me fez dehoniano?
Diante deste quadro, assumo também minhas faltas no processo.
Decisões e escolhas erradas foram assumidas por mim, mesmo que não
as tenha tomado sozinho ou sem consultar opiniões de superiores.
Porém, os resultados não foram compartilhados, ficando a
responsabilidade dos erros apenas sobre mim. Não quero diminuir
minha responsabilidade e as consequências, mas declaro a tristeza de
sentir essa solidão no caminhar, num processo que não contruí
sozinho, mas que somente a mim foram impostos os resultados. Se eu
estiver equivocado, então que Deus me ajude a discernir e,
interiormente, reconhecer que preciso mudar meu pensar.
Por esses motivos, e para não alimentar sentimentos negativos contra
a Igreja e os dehonianos, que tanto reconheço como importantes na
minha formação, nem com pessoas, que são responsáveis pelo que
sou, então decidi deixar a vida religiosa. Comunico que não
sou mais membro religioso desta instituição a que, certamente, sou
sempre grato por todas as oportunidades e benefícios que me
ofereceu, pois mesmo as situações negativas me servem como
verdadeiro e rico aprendizado para uma vida mais plena e feliz.
Aos dehonianos minha gratidão e reconhecimento. São muitos
os dehonianos que expressam com seu testemunho uma busca sincera pela
vivência do carisma. Agradeço profundamente também aos tantos
amigos e amigas formados em torno da fé, na certeza de que
construíram em mim um pouco mais da imagem de Deus. Reforço o
quanto o carisma dehoniano marca meu existir. A identificação com o
projeto originário não deixará de estar presente na minha vida.
Serei sempre dehoniano no coração, ouvindo os apelos deste carisma
na hora de responder às exigências do meu existir. Seguirei em
oração para que o carisma seja reencontrado e reassumido.
Não vou abandonar minha fé, nem a Igreja. Mas diante de
questionamentos e inquietações, não posso assumir o papel de
“representante” nem ser parte da hierarquia constituída e
defendida como “bem divino”. É meu posicionamento, que espero
não desmotivar quem acredita e aceita a hierarquia e afins, mas
quero provocar a reflexão. Certamente, alguns não concordam comigo
e têm o direito de pensar diferente. Busco pela vivência religiosa
na sua essência e perceber privilégios e regalias, por vezes ainda
defendidos por uma ala da hierarquia que sente saudades dos “tempos
de trono”, me provoca a não fazer parte desse modo. Prefiro
participar mais livremente e coerentemente com meu coração. Não me
sinto suficientemente convicto a ponto de transmitir a totalidade de
uma fé que não totalmente faz eco em mim. Para não me sentir
mentiroso ou ir contrário à doutrina, prefiro não ser um porta-voz
na hierarquia, mas uma voz que clama no mundo e pelo mundo.
Quero deixar evidente que os questionamentos são provocados por
realidades do meu interior e não pretendo generalizar como verdades
para todos. Fique claro que não sou contra a autoridade. Seria
idiotice minha o ser, pois certamente é necessária em todos os
sistemas sociais. Minha opinião não refere-se à sua constituição
natural, mas nos modos que são exercidas e no poder concedido para
garantir coisas que, sob minha opinião, não são necessárias para
uma Igreja que procura pela fraternidade e pela justa solidariedade.
Seguirei respeitando a quem de direito exerce seu ministério, mas
prefiro viver de outro modo por acreditar ser possível um exercício
de poder mais participativo e descentralizado.
Sei que esta carta não explica toda minha motivação, nem
tenho essa pretensão, pois minha decisão é embasada em questões
profundas e muito pessoais. Para mim, o modelo atual da congregação
não responde suficientemente aos meus sonhos. Esses anos todos
abriram meu coração e minha alma para buscas também em outros
lugares e situações. Provocado para isso, prefiro responder a esses
anseios fora do meio religioso institucionalizado. Não quero ser
alguém que “mantém estruturas”, mas ser um agente livre para
atualizar o amor de Deus nas novas realidades que o mundo impõem.
Escrevo para expressar um pouco do que sinto e acredito. São com os
pilares da verdade, da solidariedade, da justiça e da diversidade
que construo minha história. Acredito que cada pessoa é foco do
amor divino segundo sua própria história e capacidades. Acredito
que Deus não espera mudanças ou transformações nossas. Mudanças
e transformações são movimentos nossos, em resposta à vida e seus
ensinamentos, em resposta ao amor infinito de Deus. Deus ama.
Simplesmente ama, e nos convida a aprender com seu amor. Fiz a
experiência de não ser aceito como sou. Não posso seguir mutilando
meu ser em troca de aceitação.
Tenho esperanças numa Igreja verdadeiramente de Cristo, que
rompeu com aspectos do sistema religioso de seu tempo, hoje novamente
incluídos por muitos por conveniência e conforto. A estrutura eu
condeno com base nas minhas pessoais convicções e essa certeza me
garante que, para muitas pessoas, a estrutura não causa qualquer
inconveniente. Por isso, a diversidade é importante e necessária,
pois garante que as mais diversas expressões de vida sejam
contempladas e reconhecidas. Sem dúvidas, são muitos aqueles que
buscam e vivem o cristianismo na sua essência e minha decisão é
para preservar em mim mesmo essa convicção. Eu poderia continuar
para fazer diferente, mas escolho sair para provocar reflexão.
Minha avó, que tanto reza por minha vocação, me provocou lembrando
que “quem põe a mão no arado, não pode olhar para trás”.
Justamente por não querer “abandonar o arado” é que preciso
seguir adiante, respondendo ao amor de Deus que me chama sempre.
Estava me sentindo sufocado, e “sem ar” não poderia continuar no
“trabalho do arado”.
Sigo meu caminho. A semente do meu sonho já fincou raízes na minha
alma. Sei que é um sonho plantado pelo próprio Deus em meu coração.
Estou lutando para tornar esse sonho expressão do meu viver. Com
essa certeza avanço em frente. Embora não mais no caminho iniciado
há tantos anos, sigo escolhendo um dos caminhos oferecidos pela
encruzilhada da vida que está diante de mim, mas sem mudar a
finalidade do caminhar. Sigo em prece, unido ao amor que me criou.
Seja o que for que farei, o farei integrado ao que acredito, ao
seguimento do Coração de Jesus e na busca pela vivência concreta
do amor.
Fraternamente,
Giorgio Sinestri
novembro 2014
www.educareforma.com.br/conteudo/carta-aberta
www.educareforma.com.br/conteudo/carta-aberta
2 comentários:
Giorgio,
Li seu texto e gostei bastante. Acho que argumentou bem e sem expor seus confrades. Não posso julgar se a escolha feita era realmente a melhor. Isso cabe somente a você. Agora… é claro que fico triste, até porque será mais difícil vê-lo, meu amigo.
Mas queria deixar aqui uma breve mensagem: assim como seu caminho foi marcado pelo de muitas pessoas, você também foi importante para muitos. Eu incluso.
Não é mais possível pra mim dizer como seria o Diego sem a experiência da Juventude Dehoniana. Participei dela por toda a vida adulta e me tornei alguém melhor (embora muito imperfeito ainda) graças aos irmãos com quem tive o prazer de trabalhar junto. Lá conheci Samira, em breve minha noiva e depois esposa. Também conheci pessoas que quero ter como amigas para sempre. E também eu fui importante para algumas poucas pessoas nas comunidades em que a MDJ esteve presente nestes últimos 8 anos. Aliás, mesmo se fosse só uma neste período todo, já teria valido a pena.
O que preciso lhe dizer é que sua contribuição continuará viva e que gente como você me fazem acreditar nos projetos em que nos engajamos. Sua grande virtude, talvez também muito próxima de um vício, é o do protagonismo. Você não tem muitos pudores em dar o primeiro passo. Precisamos hoje de dehonianos, consagrados ou não, que tenham a coragem de dar primeiros passos e a fibra do segundo, do terceiro etc.
Não sei o que Deus me reserva como missão, quais pessoas ele vai me colocar à frente e dos lados, mas tenho certeza de que gente como você me impulsiona para seguir adiante.
O mesmo vale para você. Sabe que precisa apenas nos chamar e teremos imenso prazer em ajudar.
Boa noite Giorgio
Ouvi falar muitas vezes sobre "A CARTA" e só agora tive vontade de lê-la e refletir sobre a mesma.
Imagino que deve ter causado e deveria continuar causando não somente reflexão, mas mudança de postura por parte de uma grande parte dos religiosos dehonianos para que consigam dar alguma resposta significativa aos novos membros e os leigos que se deixam guiar por institucionalmente aptos, porém com humanidades pouco semelhantes ao que pede o Coração do Mestre Jesus.
Quem sabe um dia os ex membros tenham alguma voz, que ouvida, possam contribuir de alguma forma concretamente e não apenas em números dos bem vindos e os nem tanto.
Abraço fraterno.
P.S.: Parabéns novamente pela cafeteria do coração.
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