É isso mesmo. Desculpe-me os católicos
de plantão, mas preciso me render aos tempos modernos e concordar com o Supremo
Tribunal Federal que aprovou a descriminalização do aborto de anencéfalos. Já
estamos vivendo o século XXI, não tem mais sentido continuar defendendo causas
fragilizadas e antiquadas. Tudo precisa ser modernizado e atualizado, inclusive
os valores e as concepções de humanidade. Não é possível que o tempo não seja
capaz de alterar nosso pensamento e nosso modo de contemplar as coisas.
Estamos diante de algo mais importante:
a liberdade humana, especialmente da mulher e seus direitos. Neste caso do
aborto de anencéfalos, deve ser a mãe quem deve decidir. E caso uma mãe decida
não gerar um filho sem cérebro, que ela não seja criminalizada por isso. Os
danos psicológicos nesta mãe que até hoje foi forçada por uma lei sem sentido a
prosseguir com a gestação de uma criança sem qualquer expectativa de vida são
injustos. Ela tem o direito de decidir sobre seu corpo e sua vida.
Além do mais, o poder de intervenção da
Igreja nas decisões do Estado deve ser combatido. Somos uma nação laica, sem
vínculo religioso e, nestes assuntos legislativos, a Igreja precisa entender
que não compete a ela dar a direção da reflexão. Não podemos aceitar isso!
No campo da ciência, já está comprovado
que um feto anencéfalo não tem condições de manter-se vivo em situação
extrauterina. Mesmo que no parto haja sinal de vida, certamente será por poucas
horas e, no máximo, por alguns dias. Por que insistir com uma evidência: que a
vida, neste caso, é praticamente inviável?
Se você que lê este texto considera-se
uma pessoa moderna deve estar convencida que descriminalizar o aborto de
anencéfalos é a melhor opção. É uma decisão que põe fim a muito sofrimento, permite
uma maior liberdade e valorização da mulher, sempre marginalizada, e evidência
o valor da ciência e da técnica tão importantes para a humanidade.
Porém, sua “modernidade” está impedindo
de perceber algo muito importante: esse pensamento é típico de uma sociedade
que promove mortes... como a morte da liberdade. Um ser humano é livre quando
sabe lidar com suas responsabilidades diante da vida. Olhar para um feto anencéfalo
e considerá-lo potencialmente morto é negar que a vida dirige-se naturalmente
para a morte. Ter liberdade não significa poder interferir no natural da vida.
Uma mulher livre de verdade vai compreender isso plenamente e permitirá que a
vida siga naturalmente seu percurso. Mesmo que seja um curto percurso. Gerar
uma vida não é o mesmo que ser proprietário dela.
Observe a ideia de que a mulher,
historicamente descriminada e marginalizada, agora em tempos modernos deve
decidir sobre seu corpo também. Afirmar isso é muito mais fácil do que
reconhecer que nosso ponto fraco está na deturpação de nossa essência. Um mundo
cada vez mais consumista e gerador de necessidades precisa defender uma ideia
de domínio pessoal sobre vontades e desejos. Quanto mais individualista, mais
busca por produtos e satisfação, mais afastamento de qualquer desafio e
sofrimento, dimensões essencialmente humanas que precisam ser assimiladas por todo
ser humano. O sofrer é uma realidade humana que, cada vez mais, torna-se
desprezível e desnecessário. Pintado com a “cara” de liberdade, esse
aprisionamento gerado por um pensamento que existe para garantir o lucro de
poucos à custa do empobrecimento humano de tantos, tem construído o império da
riqueza desigual e excludente e o domínio do poderio dos ricos sobre os pobres.
A mulher, nesse caso, não está sendo protegida, mas impedida de, livremente,
ser realmente humana e forte diante do sofrer.
A religião, de forma geral, perde espaço
neste mundo moderno, justamente porque apresenta uma proposta de liberdade
fraterna e justa. Apresentando valores que promovem o crescimento humano e,
consequentemente, a liberdade perante sistemas que exploram muitos a favor de
poucos, a Igreja certamente é considerada um problema a ser combatido. Relativizar
os conceitos religiosos e sua moral em defesa da vida, torna frágil sua posição
de defender todos os níveis da vida humana, inclusive os fetos anencéfalos.
Então, caro leitor moderno, desculpe-me
desfazer o título desse texto. Por ser livre e responsável, sou contra a
descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Escolhendo esse título,
entrei no jogo da mídia social e da opinião de muitos, escondendo a verdade
atrás de algo primeiramente agradável e confortável, mas que não se sustenta
com a dinâmica natural da vida: surgimento, crescimento, amadurecimento e
morte. Para cada pessoa, o tempo para essa dinâmica é específico. E quem de nós
pode controlar o tempo? Ele livremente acontece e, por isso, livres que somos,
permitamos à vida seu caminho natural.
Giorgio Sinestri, scj
Giorgio Sinestri, scj
Nenhum comentário:
Postar um comentário